Samuel Fuller é um dos grandes realizadores Norte-americanos. Apesar de não ser tão reconhecido como alguns dos seus conterrâneos foi um realizador que nunca se sentiu inibido em fazer filmes sobre os mais variados e polémicos temas. Durante a sua carreira realizou vinte e três filmes, que se distinguiam pelos seus baixos orçamentos, personagens marginalizadas e forte consciência social. A sua carreira influenciou realizadores da Nouvelle Vague francesa como Jean-Luc Godard e outros grandes realizadores americanos como Martin Scorsese, Quentin Tarantino e Jim Jarmusch.
Apesar da riqueza da sua obra, quando White Dog foi lançado em 1982 foi atacado por grande parte da crítica americana, acabando por ser retirado das salas de cinema pela Paramount Pictures. As críticas incidiam sobre o facto de o filme ser racista. Vinte e sete anos depois disto acontecer, vejo o filme e pergunto: mas como é possível alguém considerar este um filme racista?
A premissa do filme é bastante simples. Uma jovem actriz atropela um cão e sentindo-se culpada acaba por ficar com ele. O cão já não era jovem e acabaria por revelar-se um cão de ataque, que tinha sido treinado especialmente para atacar pessoas negras. A jovem rapariga afeiçoa-se ao animal e apesar de alguns ataques perpetuados pelo cão ela não o quer abater, levando-o a um treinador negro para o desprogramar.
Através do parágrafo anterior dá para notar que a intenção de Fuller foi fazer um paralelismo entre o racismo incutido no cão e o racismo que existia na sociedade americana (e no mundo). O racismo do cão devia-se ao facto de ter sido treinado desde pequeno a primeiro temer e depois odiar negros. Este racismo era algo irracional no cão, um sentimento que se devia à educação que este tivera e à reacção defensiva que este tinha desenvolvido. A grande questão que o filme levanta é se este medo irracional de algo diferente e o ódio que dele resulta pode ou não ser curado.
As pessoas racistas estão personificadas no cão e as questões colocadas no filme servem exactamente para reflectirmos se é ou não possível acabar com o racismo na nossa sociedade. O fim do filme é algo ambíguo a responder a essa questão. Se por um lado o cão acabar por aceitar o treinador, que é da cor que ele tanto odeia, por outro lado acaba por ficar num estado em que é impossível saber quem ele atacará a seguir. Penso que o objectivo de Fuller também não era responder à questão, mas sim levanta-la de modo a pensarmos nela e a discutirmos, portanto a forma como conta a história serve o seu propósito.
Deixando o assunto do filme e focando mais os aspectos técnicos do mesmo, é impossível ver este filme e não realçar três aspectos. O primeiro é o facto deste filme ser realizado por quem sabe o que está a fazer, desde os planos à tensão criada ao longo do filme constata-se que Fuller domina a sua arte. O segundo aspecto é algo que eleva qualitativamente o filme: a banda sonora é composta por Ennio Morricone, e não é preciso dizer mais nada pois o nome fala por si. Por fim, algo que não abona muito a favor do filme e é sem dúvida o seu calcanhar de Aquiles: as interpretações. Com excepção de Paul Winfield (o treinador), os actores roçam quase o amadorismo. É uma pena não terem conseguido arranjar alguém melhor que Kristy McNichol (a rapariga que encontra o cão) para protagonista, já que a sua interpretação é sofrível ao longo de todo o filme (o que é mais irónico e algo caricato nisso é que ela interpreta uma actriz que está com dificuldades para arranjar trabalho).
White Dog é, sem a menor dúvida, um filme que, apesar de ter nas interpretações o seu ponto fraco, deve ser visto. É uma história com bom ritmo, intensa e principalmente faz-nos pensar na origem do racismo e na relação entre raças. Não se compreende assim como foi possível este filme ter sido proibido nos Estados Unidos nos anos 80.
Nota: E cá está a primeira entrada da "Colecção Criterion". Acho que comecei bem. Foi um bom filme. Espero que continuem a sair-me pérolas destas. :)